domingo, 29 de dezembro de 2019

MOVIMENTANDO UM SEDENTÁRIO



O sábado amanheceu com céu azul e poucas nuvens. Despertei cedo, pois o sol ainda nem tinha surgido de trás do morro que fica perto de onde moro, porém já estava claro. Resolvi fazer uma caminhada. Logo eu, um sedentário daqueles que não faz exercícios há décadas.
Antes, porém, precisava resolver uma pequena discussão.


Cérebro: Que dia lindo! Perfeito pra uma caminhada. Partiu?

Coração: Cê tá louco? Você sabe que meus batimentos estão acostumados ao ritmo entre 90 e 100 vezes por minuto. Caminhar seria ultrapassar esse limite!

Resto do Corpo:  Alguém falou em caminhada? Tem certeza? Eu quero ficar aqui na cama... só mais cinco minutinhos...

Cérebro: Vamos lá, pessoal! Olha que dia gostoso aguardando a gente lá fora. Uma caminhada fará bem pra oxigenar...

Coração: Ah tá! Você fala isso porque sabe que sou eu que trabalho duro pra mandar sangue oxigenado aí pra você, né? Nada disso. Mantenha o foco em 100. Foco em 100, cérebro!!

Cérebro: Que nada! Resto do Corpo, pode começar a mexer esses músculos aí. Vamos tomar um banho, comer algo leve, hidratar e vamos caminhar.

Resto do Corpo: Você tem certeza? Aqui tá tão bom...

Coração: Tá vendo? O Resto do Corpo está certo. Vamos ficar aqui quietos e manter o ritmo. Se quiser, faça uma caminhada até o banheiro, depois até a cozinha e em seguida até o sofá. Que tal?

Cérebro: Nada disso. Já encaminhei comandos para o Resto do Corpo se mexer pra irmos caminhar.


É, parece que o cérebro estava mesmo disposto a criar movimento, mas não foi fácil. Coração e Resto do Corpo não estavam colaborando. Foi necessária uma dose de imposição para que o Resto do Corpo pudesse se mexer. O Coração, claro, não tinha outra escolha a não ser acompanhar.
Banho tomado e refeição da manhã feita. Era hora de preparar a caminhada. Uma sessão de alongamento nas pernas, calçar um par de tênis e... foi.


Cérebro: Oba! Olha só que dia perfeito.

Resto do Corpo: É mesmo. Tá difícil até pra olhar, de tanta claridade. Vamos voltar para o apartamento?

Cérebro: Que nada. O mais difícil já fizemos. Agora é só se movimentar. Vai lá, Resto do Corpo!

Resto do Corpo: Tá, eu vou. Mas não diga que eu não avisei.

Cérebro: É uma caminhada aqui perto, pessoal. Daqui a pouco já estaremos de volta.

Coração: Já que estamos aqui, vamos. Eu nem lembro direito como trabalhar com batimentos acima dos 100, mas tudo bem...


Depois de trezentos metros de caminhada...


Coração: O que está acontecendo? Você está caminhando ou correndo, Resto do Corpo?

Resto do Corpo: Estou caminhando. Dizem que o início da caminhada é só aquecimento, mas já estou sentindo minhas panturrilhas. Cérebro, vamos voltar?

Cérebro: Voltar? Que é isso? Estou me sentindo muito bem. O Coração tá fazendo um baita trabalho mandando sangue bem oxigenado pra cá. Vamos em frente...

Coração: Fala assim porque não sabe como está a correria aqui.

Resto do Corpo: Eu já estou começando a transpirar. Recebeu essa informação, Cérebro?

Cérebro: Recebi sim! Só estou estranhando que isso começou muito cedo. A caminhada recém começou.


Logo em frente encontrei uma trilha com terreno inclinado. Seria uma subida de aproximadamente 2km. A discussão continuava acirrada...


Cérebro: Uau! Uma trilha com inclinação. Vamos subir!

Coração: Inclinação? Agora lascou. O Resto do Corpo vai precisar fazer mais força – coisa que ele não tem muita – e eu vou precisar trabalhar dobrado pra dar conta. Cébrebroooooooo

Resto do Corpo: Coração desculpa, mas eu precisei atualizar a rota. Recebi um comando do Cérebro pra começar a subir essa trilha inclinada.

Coração: Resto do Corpo, você viu alguma placa dizendo quantos metros precisaremos caminhar nessa trilha até chegar?

Resto do Corpo: Vi uma placa dizendo que são pouco mais de 2km. E agora?

Cérebro: O que vocês estão reclamando? O desafio nos mantém vivos...


Com um terço da subida cumprida...


Coração: Que trabalheira! Eu nem lembrava mais como era trabalhar assim pra dar conta de tanto movimento.

Resto do Corpo: Até parei de sentir as panturrilhas. Será que isso é bom?

Cérebro: Vamos lá, pessoal! Vocês estão indo muito bem!
O último trecho da subida é ainda mais inclinado, o que aumenta o desafio. O cérebro, esperto, evitava ler as placas que indicavam o aumento da inclinação, mas já sabia o que os aguardava.

Cérebro: Olha só... Os últimos 300m de subida. Já caminhamos praticamente 2km nessa trilha. Parabéns, pessoal!

Resto do Corpo: Preciso reabastecer o reservatório de água, Cérebro. A água que estava na garrafinha que você pediu pra trazer, acabou lá atrás.

Coração: Descanso! Eu preciso de descanso!

Cérebro: Resto do Corpo, lá no fim da trilha tem uma fonte de água. Vamos fazer o reabastecimento lá.

Coração: Descanso... Vamos descansar? Preciso voltar a 100...

Cérebro: Agora é que vem a surpresa boa. O terreno vai inclinar ainda mais no último trecho!


Começa o último trecho.


Cérebro: Resto do Corpo, não precisa ir rápido. Vamos respeitar nosso limite, tá?

Coração: A caminhada está mais lenta, mas eu estou fazendo mais força... Me ajudeeeeemmmmm

Resto do Corpo: Que difícil! O pulmão tá mandando reclamação dizendo que o ar é quase insuficiente. Os poros estão desesperados porque já deram um banho no corpo todo e precisam de mais água.

Cérebro: Resto do Corpo, olha! Já estamos quase no final da trilha. Falta só mais um pouco. Vamos em frente pra chegar na fonte. Lá é o topo e vamos parar para descansar.


Com algum esforço, cheguei ao topo do morro. O final da trilha reserva um mirante espetacular. A vista é linda e é possível ter visão de toda a cidade. Tomei água, descansei e fiz uma caminhada regenerativa por uma trilha plana, construída em volta do mirante para os visitantes terem contato com a vegetação nativa.
Ali era a metade da caminhada. Faltava voltar pra casa. O retorno foi mais tranquilo. Depois do esforço da subida, descer seria o que menos daria trabalho.


Cérebro: Resto do Corpo, já estamos quase chegando em casa. Já consigo ver o condomínio daqui.

Resto do Corpo: Ainda bem. Não vejo a hora de chegar no meu sofá.

Coração: Tô até tonto de tanto que trabalhei.

Cérebro: Chegamos, viu? Caminhada cumprida com sucesso! Parabéns, pessoal!! Resto do Corpo, pode fechar a porta do apartamento e tirar o tênis.

Resto do Corpo: E tirar a camisa, o short, tomar um banho...

Cérebro: Isso. Estamos precisando. Coração, está tudo bem? Você ficou quieto na volta pra casa.

Coração: Está tudo bem sim. Só estou esperando meu ritmo voltar ao normal.

Cérebro: Eeee, que banho bom.

Resto do Corpo: Verdade. Deixa a água cair a vontade, por favor...

Coração: E aí, já acabaram? Meu ritmo já está normalizado.

Cérebro: Claro. O próximo passo é deitar um pouco no sofá. Ufa!

Coração: Ufa!

Resto do Corpo: Ufa!


O domingo amanheceu com céu azul e poucas nuvens. Dia perfeito para uma caminhada.


Coração: Cê tá louco?...




Texto e Foto: João Borges

Obs.: Visitem o Mirante de Joinville/SC

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

ENTRE ASPAS



A rua era extensa e pouco movimentada. A tarde estava perfeita para um passeio de bicicleta. Sol brilhando, temperatura amena, uma brisa soprava leve e, o mais importante, eu estava de férias. O tempo estava todo a meu favor. Normalmente meu tempo é de outras coisas ou pessoas. Quando vejo, o dia passou. Aquele tempo entre levantar da cama e se deitar para dormir, passa num piscar de olhos. Melhor sensação é aquela que você tem quando, finalmente, resolve pagar o que deve a si mesmo.

O pouco movimento de carros contrastava com o movimento de pessoas caminhando nas calçadas. Não era época de festas ou qualquer feriado. Era apenas um dia ensolarado qualquer. Ao virar a esquina percebo um movimento incomum. Uma bicicleta derrubada no meio da ciclofaixa, um pequeno aglomerado de curiosos em volta e um carro com o sinal de alerta ligado, logo a frente. A cena típica de um atropelamento. Resolvo passar mais devagar para tentar ver se havia necessidade de ajuda. A moça ainda lá, sentada na ciclofaixa segurando a perna e mostrando expressão de dor. Eu, ainda no outro lado da rua, parei e tentei identificar melhor a pessoa. Ela percebeu que eu estava lá e com o olhar parecia me chamar. Desviei de alguns curiosos até chegar ao seu encontro. Ela, sem dizer nada, gritou por ajuda. Com cuidado, segurei sua perna. Não foi difícil perceber a fratura. Perguntei se alguém já havia chamado socorro médico. Um dos que estavam ali disse que sim e que já estava a caminho. Sem muita demora chegou uma ambulância. Rapidamente saiu um paramédico fazendo perguntas para identificar o problema. Os outros integrantes da equipe de socorro puxaram a maca e uma bolsa. Fizeram o primeiro atendimento, imobilizaram a perna fraturada e, com cuidado, colocaram-na na maca. Quando foi perguntada se estava sozinha ou se havia alguém que pudesse acompanhá-la, Ela apontou na minha direção. Larguei minha bicicleta junto a dela. Uma senhora que morava em frente tocou-me no ombro e disse que guardaria as bicicletas e que eu poderia acompanhar “minha namorada” com calma.

Entrei na ambulância e fui perguntado sobre a documentação da moça. Olhei para Ela. Estava no bolso de trás da calça. Ela estava imobilizada na maca, não havia como pegar. Meio sem jeito, mas com a necessidade de alcançar o documento, passei a mão pela cintura até alcançar o bolso. Difícil é explicar como Ela pôde exibir um sorriso no canto da boca, misturado a sensação de dor por causa da fratura. Mais difícil foi entender como ficamos sem trocar uma palavra sequer, durante o tempo todo.

Chegamos ao hospital e o atendimento foi relativamente rápido. A ficha médica já havia sido antecipada pelo pessoal de primeiro atendimento. Eu já havia sido promovido a “namorado” e acompanhante de hospital de uma pessoa totalmente estranha, mas incrível e inexplicavelmente próxima. Ela foi prontamente levada para fazer exames de imagem. Poucos instantes foram necessários para que o ortopedista me procurasse para dizer que Ela seria levada para o centro cirúrgico. A fratura não foi tão simples e era necessária cirurgia. Perguntei se era possível conversar rapidamente com ela antes do procedimento. Fui autorizado, porém não poderia ser demorado. Eu precisaria assinar alguns documentos de autorização e não o faria sem antes conversar com Ela.

Cheguei na maca onde Ela estava, já no pré-operatório. Aquele olhar tinha o poder de se comunicar comigo de forma extraordinária. Ali ouvi sua voz pela primeira vez, mas parecia déjà vu. Ao ouvi-la, a sensação de estar com Ela corria pelo tempo. Era a senha que eu precisava. Eu assinaria as autorizações sem me preocupar.

Fiquei na recepção em compasso de espera. Já havia esquecido meu passeio de bicicleta, do dia ensolarado e do tempo que reservei para pagar minhas dívidas comigo. Estava sentado numa recepção de hospital tentando entender tudo o que estava acontecendo. Uma pessoa que num momento era uma completa estranha, no outro era uma misteriosa conexão. De tanto viajar em pensamentos tentando dar explicações ao inexplicável, as horas acabaram passando rápido. A cirurgia havia acabado e Ela já estava na sala de recuperação. Seria encaminhada logo ao quarto.

Uma enfermeira veio ao meu encontro e pediu que eu fosse até o quarto 602. Logo ao entrar, a vi deitada na cama, sonolenta e com a perna suspensa. Os cabelos lisos e desarrumados, o rosto levemente pálido e os olhos entreabertos. Ela lutava contra o efeito dos medicamentos para manter-se acordada. A noite já dava lugar a madrugada. Fui até a cabeceira da cama e toquei seus cabelos. Ela fechou levemente os olhos como quem dissesse: “continua”. Fiquei ali um bom tempo, cuidando daquele pseudo-sono. Aos poucos fui recostando minha cabeça próximo ao dela. Quando me dei conta, o dia já era outro. O sol estava surgindo e fui acordado pelo médico que entrou subitamente dizendo “bom dia” em alta voz. Sorridente e com uma prancheta na mão, o médico disse que Ela ficaria ainda mais aquele dia no hospital, mas seria liberada logo no dia seguinte. A cirurgia havia sido tranquila e a recuperação seria feita em casa. Era necessário acompanhamento e sessões de fisioterapia, assim que terminasse a primeira fase da recuperação. De “namorado”, ainda acumulei a função de “cuidador”. Afinal, namorado não cuida num momento como esse? Pensei... De fato, a coisa estava ficando séria.

Fui para casa, tomei um banho e tentei voltar a realidade. Tudo aquilo parecia ter sido um grande sonho, mas não era. Já havia desistido de buscar explicações. Como entender aquela vontade de estar lá? Como dizer a si mesmo que esquecer e desejar boa sorte não estavam nos planos dali em diante? Resolvi apenas seguir aquilo que o coração dizia, o que não era muito comum para uma pessoa extremamente racional como eu.

Voltei ao hospital, acompanhei a recuperação, levei às sessões de fisioterapia, consultas médicas e exames complementares. Acompanhei-a nos novos primeiros passos. Dei a Ela minha mão, meu ombro, meus ouvidos, meu coração. Fui herói, motorista, cozinheiro, enfermeiro e nem sabia que tantas profissões habitavam em mim. Me redescobri, quando nem ao certo sabia que isso me era necessário. Tudo começou naquele dia em que Ela foi atropelada e, mesmo quebrada, me mostrou o quanto eu estava vivendo apenas entre aspas.  
#PartiuViver?



JOÃO BORGES

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

AS LÁGRIMAS QUE NÃO PUDE ENXUGAR



Aquela quinta-feira era especial. Naquela noite era o lançamento do meu mais novo livro. Meses de trabalho, semanas de preparação e analgésicos de perder a conta por causa das frequentes dores de cabeça. O corre-corre era tão intenso, que os dias que antecederam o evento pareciam pequenos. Faltavam horas.

Naquela quinta eu resolvi desacelerar. Cumprir alguns poucos compromissos para pensar um pouco mais num ser que eu estava deixando de lado: eu mesmo.

No final da manhã fui visitar um amigo. Ele havia me convidado para uma entrevista numa rádio local para conversar sobre o livro. Ao chegar na emissora, me apresentou todo o estúdio, os colegas e a estrutura de trabalho. Numa das salas estava Ela. Veio ao meu encontro com um sorriso irresistível e iluminado, mas tinha algo a mais. Diferente. Me cumprimentou e deu um beijo no rosto. Confesso que aquele sorriso ficou gravado na minha mente durante todo o tempo da visita.

Fui levado ao estúdio para a entrevista. A sala era relativamente pequena. Uma janela de vidro permitia que as pessoas acompanhassem a dinâmica da programação sem que os ruídos externos interferissem. De dentro do estúdio pude perceber algumas pessoas vendo a entrevista através da janela. Uma delas era Ela.

Após a entrevista, meu amigo me levou até a recepção. Deixei convites para que a equipe pudesse comparecer ao lançamento do livro, agradeci a oportunidade e despedi-me.

A grande noite havia chegado. Minha ansiedade só não era maior que a vontade da gerente da editora querer me estrangular. Eu deixei a equipe dela pilhada. Pedi cadeiras adicionais, mudei o lugar do cerimonialista umas trinta vezes, pedi repetidas conferências na lista de convidados, enfim. Virei o lugar do avesso com pouca necessidade e muita ansiedade.

Aos poucos os convidados iam chegando. Os lugares, sendo preenchidos. Ainda bem que pedi cadeiras adicionais. Entre as pessoas que vieram estava Ela. O sorriso, marcante, completava natural e perfeitamente aquele rosto bem construído por mãos divinas. Mas aquele olhar... eu ainda precisava entender aquele olhar.

Durante a cerimônia meus olhos percorriam a plateia, mas era impossível resistir ao magnetismo da presença dela. Eram aproximadamente trezentas pessoas, mas Ela se destacava naquela pequena multidão.

Ao final foram cumprimentos, fotos, dedicatórias, bate papo, descontração e muita energia boa. Ela ficou até o final. Trocamos telefone. A partir dali passamos a conversar todos os dias. Nos encontrávamos com certa frequência. Nossas conversas fluíam naturalmente. Não encontrava meios de conseguir resistir ao sorriso. Era de tirar do chão. Mas aquele olhar...

Num desses encontros disparei: “preciso entender: quantas lágrimas estão escondidas atrás desse olhar?”. Ela, sem rodeios, devolveu o tiro: “...todas as que derramei sem que você pudesse enxugar”.

Todas as dores, medos e incertezas estavam ali, quase imperceptíveis. O sorriso iluminado que ofuscava e guardava sentimentos que desejavam sair. Um olhar misterioso que escondia um grito inaudível. Quantas lágrimas escorreram da alma, sem o mínimo de percepção aos olhos? Quantos gritos foram dados sem que chegassem aos ouvidos da ajuda?

Ela, agora confiante, despia a alma completamente. Enquanto ouvia, também entendia o encanto que Ela era capaz de produzir.

Mas aquele olhar... não era mais necessário entender ou buscar explicações. O mistério deu lugar à leveza.

Não pude enxugar todas as suas lágrimas, mas somente até ali. Desde então vejo brilho, e não são de lágrimas.

João Borges

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

AQUELE ABRAÇO



Que dia! Quem nunca usou essa expressão pra resumir os extremos opostos, tanto para uma conquista, um “sim” que muda a rota da vida ou simplesmente para mostrar o quão leve foi o dia, quanto para absorver uma decepção, uma situação que trouxe frustração ou ainda para amenizar a sincera vontade de ligar o “botão do foda-se”.

Tinha tudo para ser um dia especial. Saí de casa motivado, animado, com minha potência vital em alto nível. Ela ainda dormia. Antes de sair, beijei-a com o cuidado necessário para não acordar a fera. Ela é o tipo de mulher que tem o termômetro do humor alterado por necessidades biológicas simples como dormir e se alimentar bem. Aprendi, com o passar do tempo, que liberdade, alimentação saudável e descanso fazem bem a si e a uma relação que deseja ser duradoura.

Nem a chuva, que caía com vontade, abalou meu entusiasmo. Desci ao térreo cantarolando, cheguei na garagem e percebi um dos pneus do carro furado. Ainda bem que aconteceu em casa, num lugar onde posso fazer a troca sem me molhar com essa chuva, pensei. Troquei o pneu, guardei as ferramentas, subi até o apartamento, tomei mais um banho e troquei de roupa. Ela acordou com o barulho e percebeu meu atraso. Resolveu levantar e me acompanhar no banho. Aquele era o tipo de atraso que vale a pena o risco. 
Apesar de ser um convite quase irrecusável, mantive o foco. No banho, nossos corpos eram apenas detalhes, porém aquele abraço, que para ela significava aconchego e segurança, para mim era, na verdade, a minha recarga de energia favorita. Procurei sair rapidamente do banho. Troquei de roupa, beijei-a novamente, dessa vez com maior intensidade.

Desci novamente até a garagem. A chuva era insistente. Entrei no carro e fui trabalhar. No caminho, por causa da chuva, um acidente de trânsito. Parecia estar tudo bem, apesar do clima aparentemente tenso. O trânsito estava pesado. Aquela motivação inicial, aos poucos, dava lugar a preocupação. O dia dava sinais de dificuldades.

Já no trabalho, entrei na sala e vi um bilhete sobre minha mesa. Reunião as 10h. A apresentação da proposta para meu principal cliente havia sido antecipada. Virei para a porta e meu diretor estava ali, estático e aparentemente ansioso. Proposta pronta, porém, ainda havia alguns alinhamentos necessários. Tínhamos dez minutos para conversar e montar a abordagem. A tensão nos olhos do meu diretor era visível. Vamos em frente, vai dar certo. No momento da apresentação o projetor falhou. Constrangimento. Mantive a calma e o foco. Meu diretor, nem tanto. No final, tudo certo. Apresentação feita e contrato renovado. Apesar de tudo, vitória.

Corre-corre do dia, tensão, e-mails, ligações, ...

Dor de cabeça. Ah, aquela dor de cabeça não estava nos planos. Se havia algo que me tirava a concentração, era a enxaqueca que me acompanhava de vez em quando. Meu dia começou bem. Estava tão motivado. O que houve? Rapidamente, a força vital que estava em alta foi se esvaindo. As circunstâncias do dia pareciam engolir minha motivação inicial. Eu precisava de recarga. Ela pareceu sentir o que eu sentia. Recebi uma mensagem no celular. Te amo. Você escolhe a massa, eu escolho o vinho. Era Ela. Mensagem simples, mas significativa.

Tomei um remédio, respirei fundo e finalizei a rotina daquele dia. Antes de seguir para casa, resolvi caminhar. Respirar. Olhar o movimento frenético dos carros sem necessidade de estar dentro de um. A dor de cabeça foi amenizando. Fiz a reflexão do dia enquanto caminhava. Momentos de vitórias e outros de derrotas. O que fiz com cada um desses instantes? Ela surgiu na minha mente, novamente. Isso era comum. Independente do instante, Ela estava lá povoando meus melhores pensamentos.

Após a caminhada, voltei para a empresa, encontrei meu carro e retornei para casa. Ela ainda não havia chegado.

Fui até o quarto, tirei a roupa e fui para o banho. Aproveitei o tempo livre para preparar uma massa. Ouvi o barulho da porta abrir e fechar. Ela chegou trazendo o vinho. Armada de sorriso, me fuzilou com os olhos. Fui presa fácil. Eu a agradei com a massa que ela gostava. Ela agradou-me com meu vinho preferido. Chegou mais perto, largou o vinho sobre a mesa e me abraçou. Aquele abraço me tirava do chão, me refazia sem esforço. Como pode um gesto tão simples conseguir reconectar os cacos que vão soltando no decorrer da existência? E o que é essa coisa inexplicável de poder sentir o pulsar incessante do coração da outra pessoa, a explosão de adrenalina e que te joga numa dimensão sem tempo ou espaço conhecido?

Ah, aquele abraço. Simples. Único. Completo. Sem qualquer explicação lógica.

Éramos apenas nós, a simplicidade, vinho e uma noite inteira. Sublime conexão.


João Borges

PERDI A CONTA

  Eu já perdi a conta das vezes que tentei te descrever. Faltou vocabulário. Faltaram adjetivos. Sobraram qualidades em meio aos defeitos...