segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

AS LÁGRIMAS QUE NÃO PUDE ENXUGAR



Aquela quinta-feira era especial. Naquela noite era o lançamento do meu mais novo livro. Meses de trabalho, semanas de preparação e analgésicos de perder a conta por causa das frequentes dores de cabeça. O corre-corre era tão intenso, que os dias que antecederam o evento pareciam pequenos. Faltavam horas.

Naquela quinta eu resolvi desacelerar. Cumprir alguns poucos compromissos para pensar um pouco mais num ser que eu estava deixando de lado: eu mesmo.

No final da manhã fui visitar um amigo. Ele havia me convidado para uma entrevista numa rádio local para conversar sobre o livro. Ao chegar na emissora, me apresentou todo o estúdio, os colegas e a estrutura de trabalho. Numa das salas estava Ela. Veio ao meu encontro com um sorriso irresistível e iluminado, mas tinha algo a mais. Diferente. Me cumprimentou e deu um beijo no rosto. Confesso que aquele sorriso ficou gravado na minha mente durante todo o tempo da visita.

Fui levado ao estúdio para a entrevista. A sala era relativamente pequena. Uma janela de vidro permitia que as pessoas acompanhassem a dinâmica da programação sem que os ruídos externos interferissem. De dentro do estúdio pude perceber algumas pessoas vendo a entrevista através da janela. Uma delas era Ela.

Após a entrevista, meu amigo me levou até a recepção. Deixei convites para que a equipe pudesse comparecer ao lançamento do livro, agradeci a oportunidade e despedi-me.

A grande noite havia chegado. Minha ansiedade só não era maior que a vontade da gerente da editora querer me estrangular. Eu deixei a equipe dela pilhada. Pedi cadeiras adicionais, mudei o lugar do cerimonialista umas trinta vezes, pedi repetidas conferências na lista de convidados, enfim. Virei o lugar do avesso com pouca necessidade e muita ansiedade.

Aos poucos os convidados iam chegando. Os lugares, sendo preenchidos. Ainda bem que pedi cadeiras adicionais. Entre as pessoas que vieram estava Ela. O sorriso, marcante, completava natural e perfeitamente aquele rosto bem construído por mãos divinas. Mas aquele olhar... eu ainda precisava entender aquele olhar.

Durante a cerimônia meus olhos percorriam a plateia, mas era impossível resistir ao magnetismo da presença dela. Eram aproximadamente trezentas pessoas, mas Ela se destacava naquela pequena multidão.

Ao final foram cumprimentos, fotos, dedicatórias, bate papo, descontração e muita energia boa. Ela ficou até o final. Trocamos telefone. A partir dali passamos a conversar todos os dias. Nos encontrávamos com certa frequência. Nossas conversas fluíam naturalmente. Não encontrava meios de conseguir resistir ao sorriso. Era de tirar do chão. Mas aquele olhar...

Num desses encontros disparei: “preciso entender: quantas lágrimas estão escondidas atrás desse olhar?”. Ela, sem rodeios, devolveu o tiro: “...todas as que derramei sem que você pudesse enxugar”.

Todas as dores, medos e incertezas estavam ali, quase imperceptíveis. O sorriso iluminado que ofuscava e guardava sentimentos que desejavam sair. Um olhar misterioso que escondia um grito inaudível. Quantas lágrimas escorreram da alma, sem o mínimo de percepção aos olhos? Quantos gritos foram dados sem que chegassem aos ouvidos da ajuda?

Ela, agora confiante, despia a alma completamente. Enquanto ouvia, também entendia o encanto que Ela era capaz de produzir.

Mas aquele olhar... não era mais necessário entender ou buscar explicações. O mistério deu lugar à leveza.

Não pude enxugar todas as suas lágrimas, mas somente até ali. Desde então vejo brilho, e não são de lágrimas.

João Borges

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PERDI A CONTA

  Eu já perdi a conta das vezes que tentei te descrever. Faltou vocabulário. Faltaram adjetivos. Sobraram qualidades em meio aos defeitos...