terça-feira, 17 de dezembro de 2019

ENTRE ASPAS



A rua era extensa e pouco movimentada. A tarde estava perfeita para um passeio de bicicleta. Sol brilhando, temperatura amena, uma brisa soprava leve e, o mais importante, eu estava de férias. O tempo estava todo a meu favor. Normalmente meu tempo é de outras coisas ou pessoas. Quando vejo, o dia passou. Aquele tempo entre levantar da cama e se deitar para dormir, passa num piscar de olhos. Melhor sensação é aquela que você tem quando, finalmente, resolve pagar o que deve a si mesmo.

O pouco movimento de carros contrastava com o movimento de pessoas caminhando nas calçadas. Não era época de festas ou qualquer feriado. Era apenas um dia ensolarado qualquer. Ao virar a esquina percebo um movimento incomum. Uma bicicleta derrubada no meio da ciclofaixa, um pequeno aglomerado de curiosos em volta e um carro com o sinal de alerta ligado, logo a frente. A cena típica de um atropelamento. Resolvo passar mais devagar para tentar ver se havia necessidade de ajuda. A moça ainda lá, sentada na ciclofaixa segurando a perna e mostrando expressão de dor. Eu, ainda no outro lado da rua, parei e tentei identificar melhor a pessoa. Ela percebeu que eu estava lá e com o olhar parecia me chamar. Desviei de alguns curiosos até chegar ao seu encontro. Ela, sem dizer nada, gritou por ajuda. Com cuidado, segurei sua perna. Não foi difícil perceber a fratura. Perguntei se alguém já havia chamado socorro médico. Um dos que estavam ali disse que sim e que já estava a caminho. Sem muita demora chegou uma ambulância. Rapidamente saiu um paramédico fazendo perguntas para identificar o problema. Os outros integrantes da equipe de socorro puxaram a maca e uma bolsa. Fizeram o primeiro atendimento, imobilizaram a perna fraturada e, com cuidado, colocaram-na na maca. Quando foi perguntada se estava sozinha ou se havia alguém que pudesse acompanhá-la, Ela apontou na minha direção. Larguei minha bicicleta junto a dela. Uma senhora que morava em frente tocou-me no ombro e disse que guardaria as bicicletas e que eu poderia acompanhar “minha namorada” com calma.

Entrei na ambulância e fui perguntado sobre a documentação da moça. Olhei para Ela. Estava no bolso de trás da calça. Ela estava imobilizada na maca, não havia como pegar. Meio sem jeito, mas com a necessidade de alcançar o documento, passei a mão pela cintura até alcançar o bolso. Difícil é explicar como Ela pôde exibir um sorriso no canto da boca, misturado a sensação de dor por causa da fratura. Mais difícil foi entender como ficamos sem trocar uma palavra sequer, durante o tempo todo.

Chegamos ao hospital e o atendimento foi relativamente rápido. A ficha médica já havia sido antecipada pelo pessoal de primeiro atendimento. Eu já havia sido promovido a “namorado” e acompanhante de hospital de uma pessoa totalmente estranha, mas incrível e inexplicavelmente próxima. Ela foi prontamente levada para fazer exames de imagem. Poucos instantes foram necessários para que o ortopedista me procurasse para dizer que Ela seria levada para o centro cirúrgico. A fratura não foi tão simples e era necessária cirurgia. Perguntei se era possível conversar rapidamente com ela antes do procedimento. Fui autorizado, porém não poderia ser demorado. Eu precisaria assinar alguns documentos de autorização e não o faria sem antes conversar com Ela.

Cheguei na maca onde Ela estava, já no pré-operatório. Aquele olhar tinha o poder de se comunicar comigo de forma extraordinária. Ali ouvi sua voz pela primeira vez, mas parecia déjà vu. Ao ouvi-la, a sensação de estar com Ela corria pelo tempo. Era a senha que eu precisava. Eu assinaria as autorizações sem me preocupar.

Fiquei na recepção em compasso de espera. Já havia esquecido meu passeio de bicicleta, do dia ensolarado e do tempo que reservei para pagar minhas dívidas comigo. Estava sentado numa recepção de hospital tentando entender tudo o que estava acontecendo. Uma pessoa que num momento era uma completa estranha, no outro era uma misteriosa conexão. De tanto viajar em pensamentos tentando dar explicações ao inexplicável, as horas acabaram passando rápido. A cirurgia havia acabado e Ela já estava na sala de recuperação. Seria encaminhada logo ao quarto.

Uma enfermeira veio ao meu encontro e pediu que eu fosse até o quarto 602. Logo ao entrar, a vi deitada na cama, sonolenta e com a perna suspensa. Os cabelos lisos e desarrumados, o rosto levemente pálido e os olhos entreabertos. Ela lutava contra o efeito dos medicamentos para manter-se acordada. A noite já dava lugar a madrugada. Fui até a cabeceira da cama e toquei seus cabelos. Ela fechou levemente os olhos como quem dissesse: “continua”. Fiquei ali um bom tempo, cuidando daquele pseudo-sono. Aos poucos fui recostando minha cabeça próximo ao dela. Quando me dei conta, o dia já era outro. O sol estava surgindo e fui acordado pelo médico que entrou subitamente dizendo “bom dia” em alta voz. Sorridente e com uma prancheta na mão, o médico disse que Ela ficaria ainda mais aquele dia no hospital, mas seria liberada logo no dia seguinte. A cirurgia havia sido tranquila e a recuperação seria feita em casa. Era necessário acompanhamento e sessões de fisioterapia, assim que terminasse a primeira fase da recuperação. De “namorado”, ainda acumulei a função de “cuidador”. Afinal, namorado não cuida num momento como esse? Pensei... De fato, a coisa estava ficando séria.

Fui para casa, tomei um banho e tentei voltar a realidade. Tudo aquilo parecia ter sido um grande sonho, mas não era. Já havia desistido de buscar explicações. Como entender aquela vontade de estar lá? Como dizer a si mesmo que esquecer e desejar boa sorte não estavam nos planos dali em diante? Resolvi apenas seguir aquilo que o coração dizia, o que não era muito comum para uma pessoa extremamente racional como eu.

Voltei ao hospital, acompanhei a recuperação, levei às sessões de fisioterapia, consultas médicas e exames complementares. Acompanhei-a nos novos primeiros passos. Dei a Ela minha mão, meu ombro, meus ouvidos, meu coração. Fui herói, motorista, cozinheiro, enfermeiro e nem sabia que tantas profissões habitavam em mim. Me redescobri, quando nem ao certo sabia que isso me era necessário. Tudo começou naquele dia em que Ela foi atropelada e, mesmo quebrada, me mostrou o quanto eu estava vivendo apenas entre aspas.  
#PartiuViver?



JOÃO BORGES

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