terça-feira, 26 de novembro de 2019

EU, ELA E O MOMENTO



Caía o entardecer. O crepúsculo era o prenúncio das cortinas do dia que se fechavam, para dar lugar ao espetáculo da lua cheia que já ensaiava seu brilho. Eu não fazia ideia, mas definitivamente aquela seria uma noite especial.

Chegamos quase ao mesmo tempo ao aeroporto, despachamos nossas malas praticamente juntas, entramos na sala de embarque e no mesmo avião, sentamo-nos em poltronas da mesma fileira, fizemos o check-in no mesmo hotel e éramos completos estranhos até então.

Enquanto eu fazia o check-in, Ela aguardava ao meu lado. Discretamente, pediu a caneta que eu usava para preencher a ficha de cadastro de hóspede. Sem qualquer esforço, sorria com os olhos. Não foi difícil perceber. Puxou assunto dizendo que havia notado que saímos do mesmo lugar para chegar ao mesmo destino. Contou-me sobre o objetivo da viagem, do trabalho, dos lugares que já havia conhecido. Quando nos demos conta, já estávamos num bistrô e as poucas horas da noite já queriam dar lugar as primeiras horas da madrugada.

Falamos desde as trivialidades das nossas rotinas, passando pelas vãs filosofias de bar até chegar ao profundo poético da alma humana. Isso mostra o quão fomos intensos, rasos e profundos em tão pouco tempo.
Viajamos pelas nossas histórias, contamos segredos que jamais seriam contados. Era a estranha intimidade normalmente vista num touchscreen. Mais estranho ainda era viver aquilo, sabendo que éramos apenas aquele instante. Não havia uma perspectiva de dia seguinte, nem tampouco arrependimentos por dias passados. Eram apenas eu, Ela e o momento.

Deixamos a conversa fluir até que a intimidade das palavras passou a ser intimidade na pele. Nos permitimos tocar mãos, braços, rosto, cabelos... As palavras, aos poucos, davam lugar ao silêncio, que em certa medida falavam mais alto que nossas próprias vozes.

Em mais um piscar de olhos, não estávamos mais no bistrô, mas no corredor do hotel. Para fechar o ciclo da conspiração universal, estávamos hospedados em quartos próximos. Levei Ela até a porta do seu quarto, me despedi com um beijo e fui para o meu quarto. 

Enquanto procurava o cartão de acesso, fui surpreendido por um abraço. Aquelas mãos já não me pareciam estranhas. Ela estava atrás de mim, querendo invadir minha madrugada muito mais que invadir meu quarto. Mais uma vez éramos três: eu, Ela e o instante. Beijei-a com intensidade. Nela escrevi poesia com os lábios, tendo o corpo como papel. Em mim, ela recitou cada verso em movimentos.

Já não estávamos mais no interior do quarto, mas na sacada. A lua cheia era uma testemunha inocente e distante. Passamos horas nos permitindo visitar os segredos ainda não contados e descobrindo a beleza da simplicidade. Ouvimos reciprocamente os mais profundos suspiros. Vivemos. E como vivemos.  

Acordei com o sol tomando conta do espaço. O calor serviu de despertador. Janela aberta. As cortinas ensaiavam esvoaçar com a pouca força do vento que entrava quarto adentro. Já havia perdido completamente a noção das horas. Ao meu lado, na cama, um vazio. Ela não estava ali. Fui até o quarto dela. Nada. Fiz contato com a recepção. Nem mesmo um check-in feito com seu nome. Que estranho...

Sonho? Quem sabe. Não tenho resposta certa. Talvez mais um devaneio da mente de um jovem escritor.

João Borges

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PERDI A CONTA

  Eu já perdi a conta das vezes que tentei te descrever. Faltou vocabulário. Faltaram adjetivos. Sobraram qualidades em meio aos defeitos...