quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

A PARTIR DALI, OS DETALHES...



Ainda lembro daquela noite. Era uma sexta-feira. Chovia forte e eu voltava para casa depois de ter encontrado com amigos para comemorar o aniversário de um deles. O trajeto era longo. Minha casa ficava no outro lado da cidade. Por causa do horário e volume de chuva, resolvi traçar uma rota maior, porém mais segura. Meu plano furou. De nada adiantou desviar o caminho. A impressão era que todos os motoristas da cidade resolveram fazer o mesmo percurso, no mesmo horário. Eu já estava preparado para encarar um longo período de tempo até chegar em casa, mas nada comparado ao que aconteceu naquela ocasião.

Entrei numa alameda que me levaria a uma avenida, cerca de dez quadras adiante. O trânsito pesado colaborou para que a alameda estivesse movimentada. Os carros moviam-se lentamente. Num dos pontos de tráfego parado, avistei um carro mal estacionado, com duas rodas sobre a calçada e as outras duas rodas na rua. O sinal de alerta estava ligado e por causa das luzes dos carros, era possível notar a silhueta de uma pessoa no interior do veículo. Enquanto estava parado, fiquei observando aquele carro. O contexto sinalizava que a pessoa precisava de ajuda. Percebi a movimentação no interior daquele carro. Ela mexia intensamente os braços, enquanto parecia falar ao telefone. Na lentidão do trânsito, meu carro foi chegando mais próximo. A curiosidade foi mais forte e me levou a estacionar logo a frente daquele carro. Para igualar o padrão mal estacionado, subi duas rodas na calçada. A chuva não dava tréguas. Mal dava para identificar o veículo de trás através do espelho retrovisor do meu carro. Criei coragem e saí naquela tempestade, sem ao menos saber se a pessoa realmente precisava de ajuda. Corri até o carro de trás e bati no vidro da janela do motorista. Sem guarda-chuva, eu estava ali, de pé, com uma mistura de alguém disposto a ajudar e, ao mesmo tempo, louco pra fugir daquele banho de chuva. De repente, uma frestinha da janela foi aberta e uma voz feminina se fez ouvir. A fresta era suficiente apenas para facilitar a comunicação e dificultar a entrada da chuva, porém na realidade dificultava a comunicação e facilitava a entrada de água no carro. Ali fora encharcado até os ossos e aproveitando a oportunidade, perguntei se precisava de ajuda. Não sei se por compaixão ou necessidade, a dona daquela voz feminina resolveu abrir e porta e sair do carro. Ela, prevenida, diferente de mim, abriu um guarda-chuva. A partir dali todos os detalhes não me escapam. As luzes dos carros que lentamente passavam, ajudavam a identificar alguns detalhes importantes. Aquele olhar misto de medo e alívio, um leve sorriso que denunciavam as covinhas que se formavam no rosto bem delineado, de pele clara e suave. Aquela mulher, cuidadosamente esculpida pelas mãos divinas estava ali, na minha frente, precisando de alguém que pudesse lhe tirar daquele lugar. Ela vestia uma camiseta preta, bem ajustada ao corpo, e saia jeans. O aspecto despojado não combinava com o contexto do momento. Procurei saber o que estava acontecendo e o que ela precisava. Ela me explicou sobre um suposto problema mecânica em seu carro e estava tentando chamar o seguro. Pelo aparente nervosismo, não havia conseguido contato. Por sorte, meu carro havia saído recentemente da revisão e o cartão de visitas do mecânico, ainda estava no junto ao painel. Corri para buscar o cartão, na esperança que o sujeito pudesse atender. A expressão facial ainda não tinha alterado. Misturava medo e alívio. Medo por não saber se eu poderia ajudar ou tramar alguma armadilha. Alívio por alguém estar disposto a sair na chuva, num lugar movimentado, para ajudá-la. O mecânico demorou um pouco, mas atendeu minha ligação. Ele não estava distante, mas iria demorar um pouco por causa do trânsito. A espera foi a senha para puxar conversa e tentar conhecer um pouco daquela linda mulher. Tentativa em vão. Poucas palavras trocadas, alguns sorrisos para tentar quebrar o gelo. Atitudes que tinham o objetivo de acalmá-la. 

Ficamos embaixo de uma marquise não muito longe dos carros mal estacionados. Sem muita demora, o mecânico chegou. Conversou um pouco com Ela para tentar diagnosticar o problema. Abriu o capô, olhou aqui, mexeu ali, e decretou: “Soltou essa mangueirinha aqui, ó. Simples de resolver. A abraçadeira de pressão escapou e a mangueira de alimentação do combustível soltou. Tenta ligar, por favor”. Como um passe de mágica, o motor ligou. Problema resolvido. Perguntei ao mecânico, quanto custaria aquele serviço. “Nada não! Estava aqui perto. Ainda bem que foi simples”. Com gratidão, dei a ele uma boa gorjeta e dispensei-o. Com expressão mais leve, Ela veio em minha direção e perguntou se havia alguma forma de recompensar-me. Disse que aceitaria um café, mas teria que ser naquele momento. Mesmo encharcado, não abriria mão de estar um pouco mais com Ela. Surpreendentemente ela aceitou o convite, mas com uma condição: de estarmos juntos em roupas secas, num lugar calmo. Ousado e de modo totalmente inusitado, convidei-a para me acompanhar até a minha casa. Lá eu poderia tomar um banho, trocar de roupa e acompanha-la. De presente, recebi um sorriso iluminado. Ela entrou no carro e seguiu atrás de mim. Entramos no apartamento e deixei-a a vontade enquanto eu corria apressado até o chuveiro. Tomei um merecido banho quente. Ela, na sala, passeava o olhar por alguns quadros e observava a decoração. Sem demorar muito, apareci pronto para sairmos. Na rua não foi possível, mas ali foi perceptível a fragrância suave do perfume. Pude notar outros detalhes dela, que a escuridão da noite insistiu me ocultar. Seus olhos castanhos, seus cabelos lisos que escorriam pelos ombros, ondulando levemente nas pontas; seu corpo bem torneado, sensual e proporcionalmente distribuído. Um conjunto deliciosamente provocante, que aliciava meus pensamentos.

Ela deixou seu carro na garagem e fomos no meu carro até um Coffee Shop. Lá pudemos explorar nossas histórias. Ela, vinda de longe, estava na cidade a pouco tempo. A empresa que trabalha, a transferiu para cá e ainda estava “caçando” apartamento. Sorte minha, pensei.

Nosso papo fluiu leve. Às vezes, passávamos a linha do trivial. Viajamos entre o frívolo e o culto. Sem perceber, as horas passaram rapidamente. A chuva, lá fora, caía solta e vigorosa.

Na saída do Coffee Shop, nos aproximamos para ficar embaixo do mesmo guarda-chuva, Ela passou seu braço direito pela minha cintura, abraçando. Meu braço esquerdo envolveu suas costas e minha mão chegou em sua cintura. Levei-a até o carro, abri a porta do carona e Ela não entrou. Estranhei, mas ainda debaixo do guarda-chuva ela ficou de frente para mim, passou seus braços pelo meu pescoço e ficamos frente a frente. Olhos nos olhos, bocas muito próximas. Palavras ditas apenas com troca de olhares. Desejos dilatando os poros da pele. Um beijo. Numa hora estávamos entrando no carro. Em outra, compartilhando o mesmo espaço, envolvidos na sala do meu apartamento. Da superficialidade desconhecida, passamos ao profundo do íntimo compartilhado a dois. A partir dali os detalhes foram eternizados.

Dos minutos de trânsito entre uma festa de aniversário e minha casa a horas de ousadia e entrega entre chuva e um café.

Assim Ela entrou em minha vida, e assim ainda permanece.


João Borges
Joinville/SC

Um comentário:

PERDI A CONTA

  Eu já perdi a conta das vezes que tentei te descrever. Faltou vocabulário. Faltaram adjetivos. Sobraram qualidades em meio aos defeitos...