Ainda lembro daquela noite. Era
uma sexta-feira. Chovia forte e eu voltava para casa depois de ter encontrado
com amigos para comemorar o aniversário de um deles. O trajeto era longo. Minha
casa ficava no outro lado da cidade. Por causa do horário e volume de chuva,
resolvi traçar uma rota maior, porém mais segura. Meu plano furou. De nada adiantou
desviar o caminho. A impressão era que todos os motoristas da cidade resolveram
fazer o mesmo percurso, no mesmo horário. Eu já estava preparado para encarar
um longo período de tempo até chegar em casa, mas nada comparado ao que
aconteceu naquela ocasião.
Entrei numa alameda que me
levaria a uma avenida, cerca de dez quadras adiante. O trânsito pesado colaborou
para que a alameda estivesse movimentada. Os carros moviam-se lentamente. Num
dos pontos de tráfego parado, avistei um carro mal estacionado, com duas rodas
sobre a calçada e as outras duas rodas na rua. O sinal de alerta estava ligado
e por causa das luzes dos carros, era possível notar a silhueta de uma pessoa
no interior do veículo. Enquanto estava parado, fiquei observando aquele carro.
O contexto sinalizava que a pessoa precisava de ajuda. Percebi a movimentação no
interior daquele carro. Ela mexia intensamente os braços, enquanto parecia
falar ao telefone. Na lentidão do trânsito, meu carro foi chegando mais próximo.
A curiosidade foi mais forte e me levou a estacionar logo a frente daquele
carro. Para igualar o padrão mal estacionado, subi duas rodas na calçada. A chuva
não dava tréguas. Mal dava para identificar o veículo de trás através do
espelho retrovisor do meu carro. Criei coragem e saí naquela tempestade, sem ao
menos saber se a pessoa realmente precisava de ajuda. Corri até o carro de trás
e bati no vidro da janela do motorista. Sem guarda-chuva, eu estava ali, de pé,
com uma mistura de alguém disposto a ajudar e, ao mesmo tempo, louco pra fugir
daquele banho de chuva. De repente, uma frestinha da janela foi aberta e uma
voz feminina se fez ouvir. A fresta era suficiente apenas para facilitar a
comunicação e dificultar a entrada da chuva, porém na realidade dificultava a
comunicação e facilitava a entrada de água no carro. Ali fora encharcado até os
ossos e aproveitando a oportunidade, perguntei se precisava de ajuda. Não sei
se por compaixão ou necessidade, a dona daquela voz feminina resolveu abrir e
porta e sair do carro. Ela, prevenida, diferente de mim, abriu um guarda-chuva.
A partir dali todos os detalhes não me escapam. As luzes dos carros que lentamente
passavam, ajudavam a identificar alguns detalhes importantes. Aquele olhar misto
de medo e alívio, um leve sorriso que denunciavam as covinhas que se formavam
no rosto bem delineado, de pele clara e suave. Aquela mulher, cuidadosamente
esculpida pelas mãos divinas estava ali, na minha frente, precisando de alguém
que pudesse lhe tirar daquele lugar. Ela vestia uma camiseta preta, bem
ajustada ao corpo, e saia jeans. O aspecto despojado não combinava com o
contexto do momento. Procurei saber o que estava acontecendo e o que ela
precisava. Ela me explicou sobre um suposto problema mecânica em seu carro e
estava tentando chamar o seguro. Pelo aparente nervosismo, não havia conseguido
contato. Por sorte, meu carro havia saído recentemente da revisão e o cartão de
visitas do mecânico, ainda estava no junto ao painel. Corri para buscar o
cartão, na esperança que o sujeito pudesse atender. A expressão facial ainda
não tinha alterado. Misturava medo e alívio. Medo por não saber se eu poderia ajudar
ou tramar alguma armadilha. Alívio por alguém estar disposto a sair na chuva,
num lugar movimentado, para ajudá-la. O mecânico demorou um pouco, mas atendeu
minha ligação. Ele não estava distante, mas iria demorar um pouco por causa do
trânsito. A espera foi a senha para puxar conversa e tentar conhecer um pouco daquela
linda mulher. Tentativa em vão. Poucas palavras trocadas, alguns sorrisos para tentar
quebrar o gelo. Atitudes que tinham o objetivo de acalmá-la.
Ficamos embaixo de
uma marquise não muito longe dos carros mal estacionados. Sem muita demora, o
mecânico chegou. Conversou um pouco com Ela para tentar diagnosticar o
problema. Abriu o capô, olhou aqui, mexeu ali, e decretou: “Soltou essa
mangueirinha aqui, ó. Simples de resolver. A abraçadeira de pressão escapou e a
mangueira de alimentação do combustível soltou. Tenta ligar, por favor”. Como
um passe de mágica, o motor ligou. Problema resolvido. Perguntei ao mecânico,
quanto custaria aquele serviço. “Nada não! Estava aqui perto. Ainda bem que foi
simples”. Com gratidão, dei a ele uma boa gorjeta e dispensei-o. Com expressão
mais leve, Ela veio em minha direção e perguntou se havia alguma forma de
recompensar-me. Disse que aceitaria um café, mas teria que ser naquele momento.
Mesmo encharcado, não abriria mão de estar um pouco mais com Ela. Surpreendentemente
ela aceitou o convite, mas com uma condição: de estarmos juntos em roupas
secas, num lugar calmo. Ousado e de modo totalmente inusitado, convidei-a para
me acompanhar até a minha casa. Lá eu poderia tomar um banho, trocar de roupa e
acompanha-la. De presente, recebi um sorriso iluminado. Ela entrou no carro e
seguiu atrás de mim. Entramos no apartamento e deixei-a a vontade enquanto eu corria
apressado até o chuveiro. Tomei um merecido banho quente. Ela, na sala, passeava
o olhar por alguns quadros e observava a decoração. Sem demorar muito, apareci
pronto para sairmos. Na rua não foi possível, mas ali foi perceptível a
fragrância suave do perfume. Pude notar outros detalhes dela, que a escuridão
da noite insistiu me ocultar. Seus olhos castanhos, seus cabelos lisos que
escorriam pelos ombros, ondulando levemente nas pontas; seu corpo bem torneado,
sensual e proporcionalmente distribuído. Um conjunto deliciosamente provocante,
que aliciava meus pensamentos.
Ela deixou seu carro na garagem
e fomos no meu carro até um Coffee Shop. Lá pudemos explorar nossas histórias.
Ela, vinda de longe, estava na cidade a pouco tempo. A empresa que trabalha, a
transferiu para cá e ainda estava “caçando” apartamento. Sorte minha, pensei.
Nosso papo fluiu leve. Às vezes,
passávamos a linha do trivial. Viajamos entre o frívolo e o culto. Sem perceber,
as horas passaram rapidamente. A chuva, lá fora, caía solta e vigorosa.
Na saída do Coffee Shop, nos
aproximamos para ficar embaixo do mesmo guarda-chuva, Ela passou seu braço
direito pela minha cintura, abraçando. Meu braço esquerdo envolveu suas costas
e minha mão chegou em sua cintura. Levei-a até o carro, abri a porta do carona
e Ela não entrou. Estranhei, mas ainda debaixo do guarda-chuva ela ficou de
frente para mim, passou seus braços pelo meu pescoço e ficamos frente a frente.
Olhos nos olhos, bocas muito próximas. Palavras ditas apenas com troca de
olhares. Desejos dilatando os poros da pele. Um beijo. Numa hora estávamos
entrando no carro. Em outra, compartilhando o mesmo espaço, envolvidos na sala
do meu apartamento. Da superficialidade desconhecida, passamos ao profundo do íntimo
compartilhado a dois. A partir dali os detalhes foram eternizados.
Dos minutos de trânsito entre
uma festa de aniversário e minha casa a horas de ousadia e entrega entre chuva
e um café.
Assim Ela entrou em minha
vida, e assim ainda permanece.
João Borges
Joinville/SC