terça-feira, 1 de setembro de 2020

SURPRESA


Você já buscou surpreender alguém? Se já fez isso, parabéns! Caso não tenha feito, não perca a oportunidade. As vezes a atitude de surpreender alguém nos revela o quanto podemos surpreender a nós mesmos.


Ela tinha trinta e três anos. Uma mulher com expressões delicadas, personalidade forte e própria. Um delicioso contraste, mas que compunha um magnífico jeito de ser e se posicionar. Tinha dois filhos, os quais revelavam que “mulher guerreira” não era apenas um estereótipo. Depois de um casamento frustrado, resolveu seguir a vida em busca dos seus mais genuínos propósitos. Engajada em causas sociais, era uma voluntária incansável. Era mulher de brilho intenso. Poucas pessoas conseguiam perceber as lágrimas que caiam escondidas daqueles olhos castanhos claros. Aliás, essa era uma das suas características: o choro era, invariavelmente, solitário. O sorriso, frequentemente compartilhado.


Ela e eu tínhamos amigos em comum. Em algumas das nossas rodas de conversa, Ela era citada, sempre com admiração. “Um par perfeito pra você”, me diziam. Nas rodas de conversa onde eu era ausente e Ela presente, o assunto era eu. Adivinha qual era a estratégia dos pseudo-cupidos? Exatamente... “Um par perfeito pra você...”


De fato, aquela mulher me atraía pela forma de ser e viver. Seu jeito de ver a vida era sensível e forte; discreta e marcante. Até então não havíamos sido apresentados formalmente, embora fossemos seguidores recíprocos nas redes sociais. O mais interessante é que ambos não tinham tomado a iniciativa de iniciar uma conversa por receio de ser invasivos. Aos olhos de uns, uma decisão, até certo ponto, coerente. A outros, uma falta de coragem adolescente. O fato é que ferir a liberdade alheia não estava no plano de um e de outro.


Era o mês de aniversário dela. Algumas amigas se encarregaram de organizar uma festa surpresa e a notícia se espalhou num grupo de mensagens criada especialmente para o evento. Eu fui incluso no grupo. A festa seria feita na chácara Vale das Pedras. Um lugar aconchegante, rodeado de verde, caminho de terra que tinha uma pequena ponte de madeira em seu trecho. Por ali passava um riacho tranquilo, de água limpa e muito fria, vinda do alto da serra. O silêncio imperava naquele lugar. Silêncio que nossos amigos estavam dispostos a quebrar.


Foram formados pequenos grupos e cada grupo ficou encarregado de uma parte da festa. Um providenciaria o som. Outro, comida e bebida. E assim o evento foi tomando forma. Estranhamente não fui encaixado num grupo, mas ficaria responsável pela surpresa da festa. Minha missão era pensar no presente-surpresa, que seria revelado logo após o bendito “Parabéns a você...” Já que eu tinha assumido uma missão solo, resolvi não revelar o que faria. Um ambiente de expectativa havia se formado no grupo de mensagens. Que presente seria esse? As especulações variavam desde viagem, passando por objetos como anel ou alguma outra joia valiosa, até um presente mais simbólico. Da minha parte, fiquei preocupado em extrair informações que me ajudariam na escolha. Teria que ser um presente que pudesse refletir o que de mais belo havia nela. Pelas redes sociais, o jeito mais discreto que encontrei para observar, passei a ficar ainda mais atento aos seus gostos, suas preferências e aos pequenos sinais que Ela demonstrava na sua forma de ser.


Os dias foram passando e conforme a data se aproximava, as trocas de mensagens eram intensificadas. Todos compartilhavam suas iniciativas. Eu e meu terrível silêncio apenas acompanhavam a organização.


Pouco mais de uma semana antes do evento, Ela reagiu a uma das minhas fotografias no Instagram. De forma discreta, fez um comentário despretensioso sobre um pôr do sol. Aquela foi a senha que faltava para conversar e tentar conhecer um pouco mais daquela mulher que tanto me atraía, mas que habitava apenas meus pensamentos. Começamos com o pôr do sol, passamos por praias, campos, viagens e estações do ano. Conversa um tanto trivial, mas que fluiu fácil e gostosa. Dos textos, passamos a conversar por vídeo. As telas eram muros transparentes que tentavam nos manter distantes, enquanto nossos olhares tentavam nos manter próximos. Continuamos nossas trivialidades por um tempo. Com um sorriso inexplicável, me convidou para acompanhá-la num evento beneficente naquele próximo fim de semana. Seria um café organizado por um clube de mães, arrecadando fundos para a casa-lar, um abrigo de menores que viviam em situação de alta vulnerabilidade social. Ela seria voluntária no evento. “Claro que aceito”, disse sem pensar muito. Além de fazer algo que gosto e bate com suas afinidades, seria a oportunidade de passar um tempo a mais com ela. O café seria no salão paroquial de uma pequena comunidade litorânea, vizinha da cidade onde morávamos. O tipo de evento bem familiar e que todos se conhecem. Era certeza de encontro com sorrisos sinceros, abraços carinhosos e algumas boas risadas. Combinamos que eu passaria na casa dela e iríamos juntos.


Desde a chegada ficou evidente o quanto a organização fazia parte da vida dela. Chegamos com alguma antecedência e Ela foi logo reunindo as mães para organizar os grupos de trabalho. Cada qual nos seus respectivos estandes de serviço. Ela me escalou para o seu estande. Agilidade, trabalho e muitos sorrisos. Antes de abrir as portas, amarrou seus lisos e longos cabelos castanhos claros em formato de coque, ajeitou uma touca descartável na cabeça, colocou luvas plásticas nas mãos, olhou pra mim e, sorrindo, disse: “agora você vai fugir de mim, estou feia...”. Eu retribuí o sorriso, mas não falei, apenas pensei “Fugir? Feia?” Diante de mim estava uma mulher sensacional.


No fim da tarde, já terminado o evento, aproveitamos para irmos até a orla, sentarmos num banco para conversar e acompanhar o espetáculo que foi o pivô do nosso primeiro contato: o pôr do sol. Saímos dali com a chegada da escuridão da noite. Apesar daquela atmosfera boa, percebi que algo deixava Ela desconfortável. Levei-a pra casa para que pudesse descansar. Ao chegar, Ela se despediu com um beijo. Uma forma carinhosa e recíproca de gratidão pelo dia agradável que passamos juntos.


No dia seguinte, domingo, acordei com uma notificação de mensagem no celular. “Sem palavras para agradecer todo o carinho que recebi. Percebi que você notou um certo desconforto meu. Depois te falo sobre isso, ok?” Além de organizada, também era observadora.


A semana seria decisiva. Eu precisava providenciar o presente-surpresa, pois a festa seria no próximo final de semana. Helena, uma amiga próxima de Ela, estava ansiosa e preocupada. Durante todo o período os grupos compartilharam suas iniciativas. Eu era o silêncio em forma de gente. “Não se preocupe. Aliás, preciso da sua ajuda para a surpresa”. Helena mostrou alívio, pois foi o primeiro indício de que eu estava preparando algo. Pedi para que Helena tirasse Ela de casa no sábado de manhã, sem possibilidade de retorno antes da festa. Além disso, precisaria da chave do apartamento para que o complemento da surpresa pudesse ser preparado lá. Mesmo com as insistências de Helena, não revelei a surpresa. “Apenas confie em mim. Ela terá a surpresa que merece...”


Ela e eu passamos a conversar com frequência. Durante a semana comentou sobre aquilo que a incomodava. “Tenho algumas características físicas que não gosto. As vezes me acho feia. Eu recebi tanto carinho seu e, naquela tarde, durante várias vezes, me peguei pensando o que poderia ter encontrado em mim que lhe pudesse ser atraente”. Procurei analisar o que poderia ser tão desagradável fisicamente naquela mulher. Nada do que eu dissesse a faria mudar de ideia, mas mostraria meu ponto de vista. Ela era fisicamente atraente, sim. Cabelos longos, lisos e que passavam a maior parte do tempo soltos ao vento. Linhas faciais bem delineadas, belas curvaturas do sorriso, olhos que tinham brilho próprio. Corpo bem desenhado e esculpido com cuidado. Molde divino que trouxe ao mundo mais duas preciosidades, as quais chamava de filhos. Trazia consigo algumas marcas da vida. Afinal, beleza não se faz só com boa alimentação e academia. Quem não assume suas boas marcas de vida, não conta boas histórias. Apesar de tudo isso, Ela se sentia desconfortável com seu físico.


Chegado o dia da festa, Helena cumpriu exatamente o que combinamos. As duas saíram pela manhã. Ainda não consegui entender como Helena fez para deixar a porta do apartamento sem trancar. Cheguei logo em seguida. Passei o final da manhã e o início da tarde preparando o ambiente. Em seguida fui em busca do presente-surpresa. Não seria difícil. Já tinha certeza do que seria. No fim da tarde fui pra casa, tomei um banho e me preparei para a festa. No carro, uma caixa bem embalada me esperava para seguir até a chácara. O conteúdo era leve. Ao sacudir, era perceptível o som semelhante a um chocalho junto com uma peça mais densa, solta dentro da caixa.


Na chácara, a animação era grande. O grupo da decoração caprichou nas cores, que remetiam ao outono. Um misto de alegria e aconchego.  A casa era grande, num estilo rústico e muito aprazível. Móveis antigos se espalhavam no ambiente. Nas paredes, os quadros contavam histórias tão antigas quanto o aspecto amarelado das telas. Na enorme sala, uma lareira. O grupo do som escolheu a trilha sonora com cuidado, dentro das preferências de Ela. Mesa bem montada e, no canto da sala, um espaço com os presentes individuais. Minha pequena caixa quase sumiu perto de algumas outras bem maiores que já estavam ali. Fiz questão que não aparecesse, afinal era pra ser um presente surpresa.


Helena chegou trazendo Ela. Todos haviam combinado de “esquecer” que seria aniversário dela e fariam de conta que seria uma festa qualquer. Logo ao chegar, Ela ficou olhando para todos os lados até me encontrar. Abriu um sorriso e veio ao meu encontro. Me cumprimentou com um beijo. Ao ver a cena, nossos amigos, sem muito entender, entreolharam-se com sorrisos marotos que escondiam uma espécie de satisfação pela conquista dos pseudo-cupidos.


Dado momento, as luzes apagaram como se houvesse falta de energia elétrica. O silêncio foi tomando conta do ambiente. A luz de uma vela começou a aparecer aos poucos. A luz foi novamente acesa e todos gritaram “surpresa”. Ela não se conteve, numa mistura de riso e choro. Cantamos o bendito “parabéns a você...” acompanhado daqueles velhos pedidos de discurso. Ela agradeceu pelo carinho. Um de seus grandes presentes seria reunir os amigos, porém nem de perto imaginava uma reunião daquele tamanho. Em seguida cada um entregou seu presente. Quando chegou minha vez, percebi o ar de expectativa. Não falei nada, apenas deixei que abrisse. Enquanto abria, Ela me olhou e disse: “Já me viu de touca descartável e agora viu minhas lágrimas. Tem certeza que encontrou alguma beleza? Estou feia.”


Na caixa, várias folhas praticamente secas e um pequeno espelho. Alguns com ar de decepção, outros de frustração. “Um espelho? Que surpresa...” diziam. Olhei para Ela dizendo:  “Está feia? Já viu o brilho que vem do fundo dos seus olhos? É ali que habita sua alma linda e leve”. “E as folhas?”, perguntou Ela. “Elas já contaram suas histórias e hoje fazem parte da estação do ano que trouxe você. A partir de agora elas farão parte do alimento de novas folhas. São novas histórias. Assim quero que seja pra você. Histórias já foram contadas e que fazem parte de um passado, mas que ressignificadas, servirão de alimento para novas e belas histórias”, respondi. Ela juntou cada folha que havia deixado cair e colocou novamente na caixa. Junto delas, o espelho.


Após a festa, levei-a para casa. Ao chegar, tomou um susto, pois a porta não estava trancada. Ela entrou com cuidado e tentou acender as luzes, sem sucesso. Antes de sair, eu havia tomado o cuidado de desligar os disjuntores. Entramos vagarosamente na escuridão do apartamento. Ela na frente, eu atrás. Pedi para que parasse por um instante. Vendei seus olhos e a levei até o sofá, pedindo para que se sentasse confortavelmente. Acendi velas, que havia deixado no corredor, juntamente com folhas praticamente secas, espalhadas desde a sala até o quarto. Na mesa, um vinho e duas taças estavam a nossa espera. O tinto que ela mais gostava. Na suíte, preparei seu banho. Na cama, flores. Os sinais que eu havia observado e que agora faziam todo sentido. Desvendei-a e convidei para entrar no meu mundo em seu próprio apartamento. Queria proporcionar-lhe novas descobertas daquelas linhas que ela tanto conhecia, mas que escondia. 


Sentidos foram aflorados a cada toque, cada carícia, cada detalhe daquela noite. Intensidade que vivemos e repetimos muitas vezes mais.

Até hoje Ela guarda uma caixa com algumas folhas e um pequeno espelho para lembrar que não se deve guardar sua beleza essencial: a que vem de dentro.


Ao final, ainda ouço: “Um espelho? Que surpresa...” 


 

3 comentários:

PERDI A CONTA

  Eu já perdi a conta das vezes que tentei te descrever. Faltou vocabulário. Faltaram adjetivos. Sobraram qualidades em meio aos defeitos...