terça-feira, 25 de agosto de 2020

SONHO REALIZADO

 



O que poderia acontecer de inusitado numa viagem de volta pra casa, depois de um dia incrível de trabalho? Você poderá ter diversas respostas na ponta da língua, afinal imprevistos acontecem em qualquer viagem. Eu não esqueço aquele fim de tarde de quinta-feira, que me presenteou com o melhor inusitado da vida.


Meu trabalho exige que eu viaje com certa frequência. E isso é uma das coisas que gosto na minha atividade. Dirigir me faz bem. Eu consigo ter ideias novas, sair da mesmice, montar estratégias, ser criativo e prestar atenção na estrada.


Na quarta-feira eu já estava me preparando. No dia seguinte eu teria uma reunião importante numa cidade próxima. Fechar negócio era questão de honra e eu estava muito motivado. Seria o resultado de quase seis meses de negociações e eu estava muito perto do objetivo. Entre a minha cidade e o local da reunião existem lugares que eu frequentemente vou para acampar ou fazer trilhas, ou seja, era um caminho absolutamente conhecido.


Banho, café da manhã gostoso, casa organizada, documentos na bolsa, computador, carregador de bateria, celular carregado, apresentação finalizada, playlist para ouvir no caminho, carro abastecido; sapato, calça jeans, cinto, camisa, blazer e meias separadas.

Check list finalizado na quinta-feira de manhã. Hora de me vestir e botar o pé na estrada. Meu dia estaria só começando.


A viagem foi fantástica. O cenário que se via pelo caminho trazia muita paz. Os olhos se perdiam pela beleza da natureza horizonte afora. Não é à toa que aquela região era uma das preferidas para meus momentos de descompressão. O dia ensolarado, o pouco movimento de carros e caminhões na estrada ajudavam no meu processo criativo, enquanto dirigia. Num dos pontos da viagem, passei pela entrada de uma estradinha de terra. Lembrei das vezes que a utilizei para chegar aos melhores pontos de acampamento no meio da mata. Ao passar, tive uma ideia. Se o negócio fosse fechado, minha comemoração seria naquele fim de semana, montando acampamento e curtindo a natureza.


Passei a manhã em reunião com a equipe técnica do cliente. No período da tarde, com a diretoria deles. A apresentação foi melhor do que eu esperava e o resultado não poderia ter sido outro: eu consegui. Saí da fábrica com uma sensação indescritível de vitória.


Voltei para o carro com sorriso largo. Precisava voltar pra casa sem deixar que a euforia tomasse conta e acabasse tirando a atenção que precisava no trajeto da volta.


A viagem de retorno estava tranquila até chegar na entrada daquela estradinha. Ali tinha um carro parado com porta malas aberto. Três senhoras idosas se colocaram na beira da estrada para pedir ajuda. Diminuí a velocidade, passei por elas e percebi que realmente era necessário parar. Voltei com cuidado e parei meu carro próximo ao delas. Junto com as três senhoras havia outra mulher. Essa era mais jovem e que se esforçava para resolver o suposto problema. Saí do carro e perguntei de que forma eu poderia ajudá-las. “O pneu furou, meu filho”, disse uma das senhoras. “Minha neta disse que trocaria, mas acho que ela está encontrando dificuldades”, completou. Olhei pra Ela, que me devolveu o olhar acompanhado de um sorriso. “Eu nunca troquei um pneu”, falou meio desconcertada. “Pode deixar que eu troco”. Percebi o ar de alívio enquanto as senhoras trocavam alguns sorrisos marotos como quem diz “quanta gentileza”.


Trocar o pneu não foi difícil. Difícil foi tirar os olhos daquela bela mulher. Enquanto trabalhava, Ela ficou ao meu lado, conversando. Disse que estava voltando de um passeio com a avó e duas amigas dela. Havia levado as três para uma caminhada perto do riacho, que corria ao longo da estradinha de terra. Enquanto ela falava, eu ouvia atentamente cada palavra. Aquela voz era música. Meus olhos intercalavam entre o trabalho e Ela. Como não notar aqueles longos cabelos castanhos claros, quase loiros que, lisos, escorriam pelos ombros e tomavam boa parte das costas? Como ficar indiferente àquele olhar sereno vindo de um par de olhos castanhos escuros, que eram acompanhados de um sorriso que encantava? Como seria possível desviar os olhos daquelas curvas, denunciadas pelo vestido longo que colava ao corpo até a cintura e soltava a imaginação junto com o tecido que a vestia da cintura para baixo? Impossível. Simplesmente impossível.


“Pronto, pneu trocado”. Olhei para as mulheres e percebi o alívio. Todas agradeceram. Ela me deu um beijo no rosto. A vitória daquele dia havia sido acompanhada por uma “vitória coletiva”, quando estendi minha mão para ajudar, mesmo que de forma simples. Retornei pra casa e Ela, as vezes, retornava às lembranças.


Na sexta-feira foi o dia de trabalho e comemoração com a equipe. Combinamos um happy hour no fim do expediente. Minha cabeça já pensava em organizar as coisas para o acampamento. O barulho da comemoração da sexta seria substituído pelo silêncio da natureza no sábado.


Cheguei relativamente cedo do happy hour. Ainda dava tempo de separar os equipamentos e mantimentos para um fim de semana na mata. Tomei um banho, preparei um lanche e fui à luta. Depois de tudo separado, colocado na mochila e levado ao carro, fui para o quarto. Na cama e de olhos fechados tentando dormir, Ela invadia minhas lembranças. Aquela voz ficou gravada de tal maneira que lembrando dela, aos poucos, consegui relaxar até finalmente dormir.


No dia seguinte acordei cedo. Me sentia revigorado pelo bom sono que tive. Tomei um banho, um café reforçado e saí em direção ao acampamento. A mesma estrada foi minha companheira de viagem. Ao passar pela entrada daquela estradinha de terra, não foi difícil lembrar do carro, das três senhoras e Ela. A memória ainda era recente. Seria muito interessante poder encontrar aquela bela mulher novamente.


Chegando ao final da estradinha, estacionei o carro embaixo de uma grande árvore. Todo o trajeto era margeado pelo riacho. O mesmo que Ela levou sua avó e as duas amigas dela. Resolvi montar meu acampamento não muito distante do carro, porém mais próximo ao riacho. O som das águas seria a principal trilha musical daquele fim de semana. A trilha, a partir dali, já era bem conhecida por mim. Daquele local, caminhando uns quinze minutos mata adentro era possível encontrar um lago, que seria meu local de banho. Montei a barraca, separei os mantimentos, preparei o terreno e saí em busca de gravetos, galhos e folhas que me permitissem fazer a manter uma fogueira. Durante minha busca por material, tentava concentrar a atenção nos sons da natureza. O canto dos pássaros, o som das folhas balançando ao vento, as águas que corriam lentas pelo riacho, toda essa orquestra era o início do espetáculo que minha mente esperava para fugir do stress. Misturado a trilha sonora natural, foi possível uma voz feminina, bem ao longe. No primeiro momento estranhei. Não era muito comum visitantes naquele lugar. Levei o material recolhido até a barraca e retornei para tentar encontrar a dona daquela voz. Parei no ponto onde ouvi a voz pela primeira vez para tentar identificar a direção de onde vinha. Parecia vir do lago. Caminhei um pouco mais até encontrar o lago e lá estava. Ela estava completamente nua, misturada as águas cristalinas e frias. Nadava com movimentos lentos e em perfeita harmonia com aquele lugar. A liberdade daquele momento era tanta, que não era difícil confundir a cena com um voo. Era pura poesia que ali nadava.


Eu estava em transe. O mundo havia ficado para trás e eu estava em outra dimensão, quando fui interrompido: “Vem, a água está uma delícia”. Desde o início Ela sabia que eu estava ali, observando. Não se furtou da sua liberdade e ainda me convidou para fazer parte do mundo dela. Tirei minha roupa e entrei no lago. A água estava fria, mas muito boa. Perguntei como ela havia parado naquele lugar. Ela chegou perto de mim sem falar nada, passou seus braços pelo meu pescoço, abraçando-me, e me beijou. Aquele beijo foi um pedido de silêncio. Nada era importante ser dito naquele momento. Ficamos aproveitando o voo nas águas durante um bom tempo, sem falar nada. Apenas ouvindo a orquestra e voando. Dado momento, Ela saiu do lago. As curvas do seu corpo, antes denunciadas pelo vestido longo, agora estavam visíveis sem um tecido que pudesse encorajar qualquer forma de imaginação. Também saí, nos vestimos e caminhamos em direção a estradinha. No caminho, colhi uma flor de um vermelho intenso. Coloquei entre seus cabelos, apoiada na orelha. Disse que havia montado um acampamento e se lhe fosse possível, gostaria que ficasse. Ela aceitou. Conversamos longamente e percebemos algumas afinidades. Ela me explicou como tinha chegado ali. Disse que era um dos seus locais preferidos para caminhada pela mata, além de acampar. E essa era só uma das afinidades que encontramos.

- Cadê seu carro? perguntei.

- Minha vó me trouxe. Noite passada ela teve um sonho. Disse que se eu viesse pra cá, te encontraria.

- Algo mais nesse sonho que é necessário que eu saiba? perguntei.

- Veremos. Disse sorrindo.  


A noite chegou rápida. A luz da lua tentava chegar completa ao chão, mas encontrava resistência das árvores que nos rodeavam. A umidade da mata trouxe uma leve sensação de frio. Fizemos nosso jantar, contamos boas e longas histórias. Entre as conversas triviais, olhares mais profundos. Aos poucos, as conversas foram ficando menos triviais e mais quentes. Nos demos a liberdade de jogar livres, sem restrições. Beijos e carícias foram surgindo. Toques mais intensos nos levaram para dentro da barraca. Ali a noite aconteceu livre. Despimos os corpos e as almas. A entrega foi excitante e completa. Descobrimos as marcas deixadas pela vida, mas levadas pela história. Nossa liberdade nos levou ao um novo voo, desta vez, pela descoberta de nós mesmos. Pele na pele. Poros visivelmente reagentes a cada movimento que fazíamos. Tudo isso temperado com o cheiro do mato e o sabor agradável da pele nua.


A noite passou rápida. “Algo mais nesse sonho?”, perguntei. “Não. Sonho realizado”, respondeu.

 


JOÃO BORGES





sábado, 8 de agosto de 2020

O CORETO DA PRAÇA CENTRAL


Outro dia resolvi fazer minha caminhada de fim de tarde em um lugar diferente, que há muito tempo não visitava. Fui até uma pequena cidade, muito aconchegante e vizinha da cidade onde eu moro. A calma daquele lugar é o contrate perfeito em relação a intensidade da sua vizinha maior. A praça central é dotada de muitas árvores e trilhas pavimentadas, ótimas para caminhadas urbanas. Apesar do tamanho da cidade, a praça central é relativamente ampla. No centro da praça existe um coreto muito bem conservado que, só de olhar, faz a imaginação voltar no tempo, tentando capturar a imagem das bandinhas tocando nas tardes ensolaradas de domingo. Casais bem trajados caminhando lentamente enquanto conversavam. Famílias que se encontravam na praça para assistir as apresentações. Ao redor do coreto, vários bancos e muitos jardins. Cena típica de novelas épicas que nos traz um exercício histórico, saudável para qualquer um.

 

Lembrei que naquela praça, oito anos antes, encontrei Ela pela primeira vez. Estava sentada em um dos bancos ao redor do coreto e conversando com um ex-colega meu, de faculdade. Naquela oportunidade, ao me ver passando, Ethan veio ao meu encontro para me cumprimentar. Apresentou-me sua esposa, Ela, e seus dois filhos. Tivemos uma conversa relativamente rápida, mas muito cordial.

 

Caminhei aproximadamente duas horas entre as trilhas da praça e as ruas da cidade. Para finalizar a caminhada, resolvi subir um morro próximo, onde havia um ponto de observação da cidade. Uma espécie de mirante que tinha uma estrutura de trilha com deck de madeira. De lá era possível observar boa parte da cidade e o olhar se perdia pelo lindo horizonte daquela região. Fui até lá para ver o pôr do sol. Várias pessoas fizeram o mesmo. Sentei-me num dos bancos para descansar e aguardar o espetáculo do astro-rei. Enquanto aguardava, uma doce e encantadora voz feminina se fez ouvir por trás de mim. “Oi! Lembra de mim?”, disse. Virei para trás e tal foi minha surpresa ao ver Ela. “Oi, claro que lembro”, respondi. Percebi que Ela estava só, sem Ethan ou os filhos. “Me admira, depois de tanto tempo você ainda lembrar. Posso sentar ao seu lado?”, perguntou. Acenei positivamente e sentou-se.

 

Ela tem estatura baixa e estava especialmente linda. Pele escura, cabelos pretos, lisos e longos. Olhar penetrante acompanhado de um sorriso singular, expostos por lábios perfeitamente esculpidos. Vestia roupa de academia, colada ao corpo, mostrando que não foram as duas gestações, nem mesmo o tempo que a impediram de ter belas curvas do início ao fim. Ela tinha me visto caminhando na praça e resolveu ir até o mirante também.

 

Perguntei por Ethan e os filhos. Disse havia se divorciado a apenas dois anos e os filhos estavam passando o fim de semana com Ethan. Estava aproveitando para passear e ver o por do sol daquele ponto. A conversa fluiu até o momento em que percebemos que foi necessário o silêncio para apreciar aquele espetáculo. Aos poucos, o crepúsculo chegava. A luz do dia era substituída pelo escuro da noite. As pessoas iam embora e nós acabamos ficando um pouco mais.

 

Fiquei surpreso, pois a conversa revelava vários pontos em comum. Hábitos de caminhada em cenários diferentes, pôr do sol, praia, preferências musicais, enfim. Vagamos por vários assuntos.

 

A lua já tomava conta do seu lugar no céu e nós estávamos ali, sozinhos. Não contamos as horas, nem os temas conversados. Apenas nos permitimos viver aquele momento. Num dos raros instantes de silêncio, Ela apoiou sua cabeça em meu ombro e ficou olhando para as estrelas. Entrei no silêncio dela e a envolvi num abraço. Com isso, Ela se aconchegou ainda mais, procurando espaço no meu peito. Aquele silêncio foi quebrado por um movimento. Ela estendeu sua mão, tocando o lado do meu rosto e fazendo com que eu virasse meu olhar para o dela. Sem dizer nada, lançou seus lábios contra os meus. Beijo doce e intenso. Impossível tentar explicar a sensação de saber que aquele beijo seria meu, algum dia. As palavras davam lugar aos olhares. Os beijos viajavam entre a docilidade e a lascividade. Nossas mãos passaram a percorrer nossos corpos, numa volúpia indescritível. Tudo isso interrompido de forma repentina pelo guarda que cuidava da vigilância daquele espaço. Momento tenso e estranho. Acalmamos os ânimos enquanto éramos orientados a deixar o lugar, por motivos de segurança.

 

Fui para o meu carro. Ela para o dela. Como tínhamos que sair dali, combinamos de nos reencontrar na praça central. E lá fomos. Aproveitamos aquela noite e o restante do fim de semana. Ela e seus filhos não moram na mesma cidade que eu, porém não é muito distante. Trocamos mensagens, nos encontramos e vivemos nossos momentos intensamente. As vezes eu aqui e Ela lá. Outras, eu aqui, Ela e seus filhos também. Outras ainda, eu e Ela em algum outro lugar. Ambos presos pela liberdade na qual vivemos. E assim vamos cantando a vida, como num coreto na praça central.

 

João Borges


PERDI A CONTA

  Eu já perdi a conta das vezes que tentei te descrever. Faltou vocabulário. Faltaram adjetivos. Sobraram qualidades em meio aos defeitos...