Você já buscou surpreender alguém?
Se já fez isso, parabéns! Caso não tenha feito, não perca a oportunidade. As
vezes a atitude de surpreender alguém nos revela o quanto podemos surpreender a
nós mesmos.
Ela tinha trinta e três anos.
Uma mulher com expressões delicadas, personalidade forte e própria. Um delicioso
contraste, mas que compunha um magnífico jeito de ser e se posicionar. Tinha
dois filhos, os quais revelavam que “mulher guerreira” não era apenas um
estereótipo. Depois de um casamento frustrado, resolveu seguir a vida em busca
dos seus mais genuínos propósitos. Engajada em causas sociais, era uma
voluntária incansável. Era mulher de brilho intenso. Poucas pessoas conseguiam perceber
as lágrimas que caiam escondidas daqueles olhos castanhos claros. Aliás, essa
era uma das suas características: o choro era, invariavelmente, solitário. O
sorriso, frequentemente compartilhado.
Ela e eu tínhamos amigos em
comum. Em algumas das nossas rodas de conversa, Ela era citada, sempre com
admiração. “Um par perfeito pra você”, me diziam. Nas rodas de conversa onde eu
era ausente e Ela presente, o assunto era eu. Adivinha qual era a estratégia
dos pseudo-cupidos? Exatamente... “Um par perfeito pra você...”
De fato, aquela mulher me
atraía pela forma de ser e viver. Seu jeito de ver a vida era sensível e forte;
discreta e marcante. Até então não havíamos sido apresentados formalmente,
embora fossemos seguidores recíprocos nas redes sociais. O mais interessante é
que ambos não tinham tomado a iniciativa de iniciar uma conversa por receio de
ser invasivos. Aos olhos de uns, uma decisão, até certo ponto, coerente. A outros,
uma falta de coragem adolescente. O fato é que ferir a liberdade alheia não
estava no plano de um e de outro.
Era o mês de aniversário dela. Algumas amigas se encarregaram de organizar uma
festa surpresa e a notícia se espalhou num grupo de mensagens criada
especialmente para o evento. Eu fui incluso no grupo. A festa seria feita na
chácara Vale das Pedras. Um lugar aconchegante, rodeado de verde, caminho de
terra que tinha uma pequena ponte de madeira em seu trecho. Por ali passava um
riacho tranquilo, de água limpa e muito fria, vinda do alto da serra. O silêncio
imperava naquele lugar. Silêncio que nossos amigos estavam dispostos a quebrar.
Foram formados pequenos grupos
e cada grupo ficou encarregado de uma parte da festa. Um providenciaria o som.
Outro, comida e bebida. E assim o evento foi tomando forma. Estranhamente não
fui encaixado num grupo, mas ficaria responsável pela surpresa da festa. Minha
missão era pensar no presente-surpresa, que seria revelado logo após o bendito “Parabéns
a você...” Já que eu tinha assumido uma missão solo, resolvi não revelar o que faria.
Um ambiente de expectativa havia se formado no grupo de mensagens. Que presente
seria esse? As especulações variavam desde viagem, passando por objetos como anel
ou alguma outra joia valiosa, até um presente mais simbólico. Da minha parte,
fiquei preocupado em extrair informações que me ajudariam na escolha. Teria que
ser um presente que pudesse refletir o que de mais belo havia nela. Pelas redes
sociais, o jeito mais discreto que encontrei para observar, passei a ficar
ainda mais atento aos seus gostos, suas preferências e aos pequenos sinais que
Ela demonstrava na sua forma de ser.
Os dias foram passando e
conforme a data se aproximava, as trocas de mensagens eram intensificadas.
Todos compartilhavam suas iniciativas. Eu e meu terrível silêncio apenas
acompanhavam a organização.
Pouco mais de uma semana antes
do evento, Ela reagiu a uma das minhas fotografias no Instagram. De forma
discreta, fez um comentário despretensioso sobre um pôr do sol. Aquela foi a
senha que faltava para conversar e tentar conhecer um pouco mais daquela mulher
que tanto me atraía, mas que habitava apenas meus pensamentos. Começamos com o
pôr do sol, passamos por praias, campos, viagens e estações do ano. Conversa um
tanto trivial, mas que fluiu fácil e gostosa. Dos textos, passamos a conversar
por vídeo. As telas eram muros transparentes que tentavam nos manter distantes,
enquanto nossos olhares tentavam nos manter próximos. Continuamos nossas
trivialidades por um tempo. Com um sorriso inexplicável, me convidou para acompanhá-la
num evento beneficente naquele próximo fim de semana. Seria um café organizado
por um clube de mães, arrecadando fundos para a casa-lar, um abrigo de menores
que viviam em situação de alta vulnerabilidade social. Ela seria voluntária no
evento. “Claro que aceito”, disse sem pensar muito. Além de fazer algo que gosto
e bate com suas afinidades, seria a oportunidade de passar um tempo a mais com
ela. O café seria no salão paroquial de uma pequena comunidade litorânea, vizinha
da cidade onde morávamos. O tipo de evento bem familiar e que todos se
conhecem. Era certeza de encontro com sorrisos sinceros, abraços carinhosos e
algumas boas risadas. Combinamos que eu passaria na casa dela e iríamos juntos.
Desde a chegada ficou evidente
o quanto a organização fazia parte da vida dela. Chegamos com alguma
antecedência e Ela foi logo reunindo as mães para organizar os grupos de trabalho.
Cada qual nos seus respectivos estandes de serviço. Ela me escalou para o seu
estande. Agilidade, trabalho e muitos sorrisos. Antes de abrir as portas, amarrou
seus lisos e longos cabelos castanhos claros em formato de coque, ajeitou uma
touca descartável na cabeça, colocou luvas plásticas nas mãos, olhou pra mim e,
sorrindo, disse: “agora você vai fugir de mim, estou feia...”. Eu retribuí o
sorriso, mas não falei, apenas pensei “Fugir? Feia?” Diante de mim estava uma
mulher sensacional.
No fim da tarde, já terminado
o evento, aproveitamos para irmos até a orla, sentarmos num banco para
conversar e acompanhar o espetáculo que foi o pivô do nosso primeiro contato: o
pôr do sol. Saímos dali com a chegada da escuridão da noite. Apesar daquela
atmosfera boa, percebi que algo deixava Ela desconfortável. Levei-a pra casa
para que pudesse descansar. Ao chegar, Ela se despediu com um beijo. Uma forma
carinhosa e recíproca de gratidão pelo dia agradável que passamos juntos.
No dia seguinte, domingo,
acordei com uma notificação de mensagem no celular. “Sem palavras para
agradecer todo o carinho que recebi. Percebi que você notou um certo
desconforto meu. Depois te falo sobre isso, ok?” Além de organizada, também era
observadora.
A semana seria decisiva. Eu
precisava providenciar o presente-surpresa, pois a festa seria no próximo final
de semana. Helena, uma amiga próxima de Ela, estava ansiosa e preocupada.
Durante todo o período os grupos compartilharam suas iniciativas. Eu era o
silêncio em forma de gente. “Não se preocupe. Aliás, preciso da sua ajuda para
a surpresa”. Helena mostrou alívio, pois foi o primeiro indício de que eu
estava preparando algo. Pedi para que Helena tirasse Ela de casa no sábado de
manhã, sem possibilidade de retorno antes da festa. Além disso, precisaria da
chave do apartamento para que o complemento da surpresa pudesse ser preparado
lá. Mesmo com as insistências de Helena, não revelei a surpresa. “Apenas confie
em mim. Ela terá a surpresa que merece...”
Ela e eu passamos a conversar
com frequência. Durante a semana comentou sobre aquilo que a incomodava. “Tenho
algumas características físicas que não gosto. As vezes me acho feia. Eu recebi
tanto carinho seu e, naquela tarde, durante várias vezes, me peguei pensando o
que poderia ter encontrado em mim que lhe pudesse ser atraente”. Procurei analisar
o que poderia ser tão desagradável fisicamente naquela mulher. Nada do que eu
dissesse a faria mudar de ideia, mas mostraria meu ponto de vista. Ela era fisicamente
atraente, sim. Cabelos longos, lisos e que passavam a maior parte do tempo
soltos ao vento. Linhas faciais bem delineadas, belas curvaturas do sorriso,
olhos que tinham brilho próprio. Corpo bem desenhado e esculpido com cuidado.
Molde divino que trouxe ao mundo mais duas preciosidades, as quais chamava de
filhos. Trazia consigo algumas marcas da vida. Afinal, beleza não se faz só com
boa alimentação e academia. Quem não assume suas boas marcas de vida, não conta
boas histórias. Apesar de tudo isso, Ela se sentia desconfortável com seu
físico.
Chegado o dia da festa, Helena
cumpriu exatamente o que combinamos. As duas saíram pela manhã. Ainda não consegui
entender como Helena fez para deixar a porta do apartamento sem trancar.
Cheguei logo em seguida. Passei o final da manhã e o início da tarde preparando
o ambiente. Em seguida fui em busca do presente-surpresa. Não seria difícil. Já
tinha certeza do que seria. No fim da tarde fui pra casa, tomei um banho e me
preparei para a festa. No carro, uma caixa bem embalada me esperava para seguir
até a chácara. O conteúdo era leve. Ao sacudir, era perceptível o som semelhante
a um chocalho junto com uma peça mais densa, solta dentro da caixa.
Na chácara, a animação era
grande. O grupo da decoração caprichou nas cores, que remetiam ao outono. Um
misto de alegria e aconchego. A casa era grande, num estilo rústico e muito aprazível. Móveis antigos se espalhavam no ambiente. Nas paredes, os quadros contavam histórias tão antigas quanto o aspecto amarelado das telas. Na enorme sala, uma lareira. O grupo do som escolheu a trilha
sonora com cuidado, dentro das preferências de Ela. Mesa bem montada
e, no canto da sala, um espaço com os presentes individuais. Minha pequena
caixa quase sumiu perto de algumas outras bem maiores que já estavam ali. Fiz
questão que não aparecesse, afinal era pra ser um presente surpresa.
Helena chegou trazendo Ela.
Todos haviam combinado de “esquecer” que seria aniversário dela e fariam de
conta que seria uma festa qualquer. Logo ao chegar, Ela ficou olhando para
todos os lados até me encontrar. Abriu um sorriso e veio ao meu encontro. Me
cumprimentou com um beijo. Ao ver a cena, nossos amigos, sem muito entender, entreolharam-se
com sorrisos marotos que escondiam uma espécie de satisfação pela conquista dos
pseudo-cupidos.
Dado momento, as luzes
apagaram como se houvesse falta de energia elétrica. O silêncio foi tomando
conta do ambiente. A luz de uma vela começou a aparecer aos poucos. A luz foi
novamente acesa e todos gritaram “surpresa”. Ela não se conteve, numa mistura
de riso e choro. Cantamos o bendito “parabéns a você...” acompanhado daqueles velhos
pedidos de discurso. Ela agradeceu pelo carinho. Um de seus grandes presentes
seria reunir os amigos, porém nem de perto imaginava uma reunião daquele
tamanho. Em seguida cada um entregou seu presente. Quando chegou minha vez,
percebi o ar de expectativa. Não falei nada, apenas deixei que abrisse. Enquanto
abria, Ela me olhou e disse: “Já me viu de touca descartável e agora viu minhas
lágrimas. Tem certeza que encontrou alguma beleza? Estou feia.”
Na caixa, várias folhas praticamente
secas e um pequeno espelho. Alguns com ar de decepção, outros de frustração. “Um
espelho? Que surpresa...” diziam. Olhei para Ela dizendo: “Está feia? Já viu o brilho que vem do fundo
dos seus olhos? É ali que habita sua alma linda e leve”. “E as folhas?”,
perguntou Ela. “Elas já contaram suas histórias e hoje fazem parte da estação do
ano que trouxe você. A partir de agora elas farão parte do alimento de novas folhas.
São novas histórias. Assim quero que seja pra você. Histórias já foram contadas
e que fazem parte de um passado, mas que ressignificadas, servirão de alimento
para novas e belas histórias”, respondi. Ela juntou cada folha que havia
deixado cair e colocou novamente na caixa. Junto delas, o espelho.
Após a festa, levei-a para
casa. Ao chegar, tomou um susto, pois a porta não estava trancada. Ela entrou
com cuidado e tentou acender as luzes, sem sucesso. Antes de sair, eu havia
tomado o cuidado de desligar os disjuntores. Entramos vagarosamente na
escuridão do apartamento. Ela na frente, eu atrás. Pedi para que parasse por um
instante. Vendei seus olhos e a levei até o sofá, pedindo para que se sentasse
confortavelmente. Acendi velas, que havia deixado no corredor, juntamente com
folhas praticamente secas, espalhadas desde a sala até o quarto. Na mesa, um
vinho e duas taças estavam a nossa espera. O tinto que ela mais gostava. Na suíte, preparei seu
banho. Na cama, flores. Os sinais que eu havia observado e que agora faziam todo
sentido. Desvendei-a e convidei para entrar no meu mundo em seu próprio apartamento. Queria proporcionar-lhe novas descobertas daquelas linhas que ela tanto conhecia, mas que escondia.
Sentidos foram aflorados a
cada toque, cada carícia, cada detalhe daquela noite. Intensidade que vivemos e
repetimos muitas vezes mais.
Até hoje Ela guarda uma caixa com algumas folhas e um pequeno espelho para lembrar que não se deve guardar sua beleza essencial: a que vem de dentro.
Ao final, ainda ouço: “Um
espelho? Que surpresa...”